CIÚME
by Sandra Regina Barboza Costa
O amor em Freud menciona uma escolha neurótica feita pelos homens que exigem quatro pré-condições:
1º. - a pessoa escolhida de alguma forma, já deve pertencer a outrem;
2º. - a pessoa escolhida deve ter uma má reputação sexual;
3º. - o homem deve valorizar esse tipo de mulher; e, finalmente;
4º. - o homem deve apresentar inconscientemente uma ansiedade obsessiva em salvar essa mulher escolhida.
Penso que o neurótico faz a repetição do primeiro amor a vida toda...
Freud fala que amamos no outro, aquilo que ele apresenta de nós mesmos, ou seja, amamos a própria imagem, ou aquilo que o outro tem e que queremos possuir.
Dependentes do objeto de amor as pessoas apresentam a mais forte das dores quando desprezadas pelo objeto de amor ou quando o perdem por motivos de infidelidade ou de morte. Perder o amor do amado é também perder o que era o centro organizador do psiquismo, ou seja, do eu.
Diante da ameaça perceptível da perda do objeto amado, desta relação valiosa com o objeto de amor, o ciúme vem como uma reação complexa e passa a ser uma constrangida homenagem que a inferioridade presta ao mérito. Provoca o temor da perda e envolve sempre três ou mais pessoas, a pessoa que sente ciúme, a pessoa de quem se sente ciúme e a terceira ou terceiras pessoas que são o motivo do ciúme - o que faz criar tumulto.
Em 1922, Freud menciona que o ciúme está relacionado principalmente com o delírio e à paranoia e diz que há três tipos de ciúme: o normal, o projetado e o delirante. Diz que o ciúme normal é um estado emocional que pode ser comparado ao luto, pois causa sofrimento por pensar na perda do objeto amado, lembrando aí a ferida narcísica e também os sentimentos de inimizade contra o rival bem sucedido. Freud diz que o ciúme projetado menciona infidelidade concreta na vida real ou de impulsos reprimidos. Já o ciúme delirante teria sua origem em impulsos reprimidos de infidelidade, mas com uma importante diferença do ciúme projetado, pois o objeto nesses casos é do mesmo sexo do sujeito.
Freud faz a seguinte colocação:
Embora possamos chamá-lo de ‘normal’, o ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado da situação real, proporcionado as circunstâncias reais e sob controle do ego consciente; isso por achar-se profundamente enraizado no inconsciente, ser uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional da criança e originar-se no Complexo de Édipo ou de irmão-irmã do primeiro período sexual. Além do mais, é digno de nota que, em certas pessoas, ele é experimentado bissexualmente, isto é, um homem não apenas sofrerá pela mulher que ama e odiará o homem seu rival, mas também sentirá pesar pelo homem a quem ama inconscientemente, e ódio pela mulher, como sua rival (FREUD, 1976, p. 20).
A problemática psíquica envolvida no ciúme parece oscilar entre a fase edipiana que se manifesta na cena primitiva, no embate com o rival, e entre a fase narcísica, ou seja, paixão vivida de uma forma regressiva. Arrisco-me a dizer que o ciúme seria então uma cena primitiva vivida de forma intensa e regressiva.
Quando a dor da perda do objeto primário toma dimensões acentuadas, ou seja, quando há um forte investimento de representações ligadas a esta ferida narcísica, as relações do sujeito são marcadas por um temor iminente, uma ameaça de perda apresentada como ciúme. A emergência do ciúme depende da fixação numa ferida narcísica, ou ainda, de um “fracasso do narcisismo” em manter o investimento libidinal no eu. Há uma fragilidade narcísica no ciumento que revela um investimento narcísico parcialmente deficiente da representação de si.
Parece que a dinâmica do ciúme apresenta uma dependência muito forte da confirmação amorosa do companheiro(a), revelando uma fragilidade narcísica. É como se a devoção e a admiração do parceiro(a) garantissem o seu valor pessoal enquanto que a infidelidade do amado(a), cujo olhar foi captado por um(a) rival, privasse esse sujeito de um suporte indispensável à manutenção de um sentimento de si. Essa dependência massiva do amado aponta para uma insuficiência do investimento narcísico fálico, e afirma, então, que a “perda do objeto é desse modo, reforçada pela ferida narcísica”. Isto significa que uma perda atual é intensificada pelo retorno de uma perda primitiva recalcada. Ocorre o retorno da libido ao eu, sob forma de uma preocupação excessiva, como reação compensatória a um investimento falho da representação do eu, ou seja, o ciúme mascara uma falha narcísica básica.
Freud (1917 [1915]) menciona que na melancolia, diferentemente do luto, a perda da relação com o objeto e o retraimento do investimento libidinal para o eu implicam em um “envilecimento” do próprio eu que, então, identificado narcisicamente com o objeto perdido, ataca a si mesmo no lugar do objeto. O ódio ao objeto volta-se para o eu e culmina com sua desvalorização severa e com uma baixa evidente na auto-estima.
A melancolia para Freud (1917) funda-se sobre uma escolha narcísica de objeto que regride para uma identificação narcísica em consequência da perda do objeto amoroso.
Com relação ao rompimento da relação amorosa no melancólico, Freud (1917[1915]) afirma que: “(...) uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação”. (p. 255)
A identificação que altera o eu à qual Freud se refere acima é uma identificação narcísica nos moldes daquela que se produz no primeiro momento especular onde a imagem do eu se constitui a partir do olhar da mãe (Lacan, 1949; 1954).
O olhar da mãe, denominado por Lacan como o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência à antecipação que, para o sujeito, preso na ilusão da insuficiência espacial, maquina os fantasmas que se sucedem de uma imagem do corpo fragmentado a uma forma que chamaremos ortopédica de sua totalidade e à armadura enfim assumida de uma identidade alienante que vai marcar com a sua estrutura rígida todo seu desenvolvimento mental. Assim, a ruptura do círculo do Innenwelt à Unwelt engendra a quadratura inesgotável das recolagens do eu.
Assim também parece acontecer no ciúme do melancólico. Este depende fortemente de uma imagem de eu fornecida pelo outro, ou melhor, ele adere a essa imagem como parte integrante do que reconhece como um si mesmo.
O momento onde acaba o estádio do espelho, como diz Lacan, inaugura, pela identificação à imago do semelhante e o drama do ciúme primordial, a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas. É este momento que decisivamente faz transferir todo o saber humano na mediatização pelo desejo do outro, constitui seus objetos numa equivalência abstrata pela rivalidade do outrem e faz do [eu] este aparelho para o qual toda impulsão dos instintos será um perigo, mesmo que ela respondesse a uma maturação natural – a própria normalização dessa maturação dependendo desde então, no homem, de uma mediação cultural, como acontece com o objeto sexual no Complexo de Édipo.
A identificação narcísica é a mais primitiva e a mais importante em seus efeitos, pois constitui o próprio eu e suas clivagens. É formada a partir da primeira relação com a mãe e se constitui num tipo essencial de identificação que se reflete na forma como serão vividas as relações objetais futuras. Por outro lado, o predomínio de uma escolha narcísica de objeto, apoiada na identificação narcísica, parece ser mais um elemento que se associa à intensificação do ciúme, na medida em que o rompimento da relação amorosa reinveste a ferida narcísica e provoca uma regressão à identificação narcísica subjacente.
Considero então, que a falha no processo de construção da imagem narcísica é a causa mais forte de uma repetição incessante do ciúme. O fracasso do narcisismo, devido a um investimento narcísico falho, faz, portanto, com que uma ferida narcísica estrutural seja reinvestida, apresentando-se como uma insuficiência de amor próprio e abrindo caminho para a constante dependência do outro. Todo esse processo culmina no estabelecimento de relações amorosas de dependência e dominação tanto em relação ao objeto amoroso quanto ao rival, nas quais o sujeito ciumento se coloca, como muitos autores afirmam, dialeticamente em um dos pólos: dominador ou dominado, senhor ou escravo.
Ao remontar o ciúme a uma “marca de origem” depressiva, podemos supor que o ciúme se dá devido em primeiro tempo a situações de separação da mãe não significadas, como o próprio nascimento e o desmame. Tais acontecimentos psíquicos são da ordem de uma ferida narcísica que carregariam em si um potencial traumático a ser vivenciado em forma de ciúme, nas relações posteriores de rivalidade pertinentes ao segundo tempo do ciúme.
É claro que não podemos dizer que um estado de depressão ciumenta, ou ciúme melancólico, não se dá especificamente de um fato da realidade, pois o ciúme pode ser imaginário ou real, pode ser parcial ou total.
A perda do objeto amado para o deprimido inclui a perda de sua capacidade de obter prazer, sua razão de viver e de seu valor pessoal. Aliás, são as vicissitudes imaginárias, as quais mencionam o registro de fundo dos fenômenos narcísicos, que vão desencadear o processo de construção fantasística de qualquer ciumento.
Em geral, quanto mais ativamente o sujeito constrói suas fantasias acerca da traição do seu objeto de amor, mais ele se aproxima de uma patologia delirante e/ou paranóica que pode se caracterizar por uma perseguição explícita ao rival e ao objeto de amor.
Com o ciumento depressivo é diferente. O depressivo parece se conformar com a traição do objeto amado, não persegue, não compete e nem luta, considera-se perdedor e declara inevitável que o parceiro amoroso possua, ou ame, um outro. Ele se distingue dos ciumentos habituais, sente-se indigno de receber um amor exclusivo, se autorecrimina e desvaloriza-se, sofre antes de tudo por não poder continuar a amar seu objeto, do que por não ser amado.
O ciumento se dá por vencido pelo rival, colocando-se sempre numa posição inferiorizada, dada uma configuração amorosa triangular, em que não se considera digno de receber amor, nem de disputar com o rival idealizado, descrição que imediatamente nos remete a uma re-atualização edípica.
O ciumento melancólico identifica-se tanto com o objeto perdido, quanto com o rival, o que acarreta consequências psíquicas significativas. Além disso, se entendemos que no ciúme melancólico a identificação com o rival vem junto com a perda da capacidade de amar, por outro lado postulamos que a perda do objeto implica numa perda do ideal. Freud, em 1921, no texto “A psicologia das massas e análise do Eu”, alerta que nas situações de apaixonamento o objeto ocupa o lugar do ideal do eu e, portanto, ao perdê-lo o sujeito perde também seu ideal. Esta possibilidade presente no ciúme melancólico representa um motivo a mais para o desinvestimento narcísico do ciumento, submetido então, a um supereu cruel que o assola continuamente. Daí podemos pensar na dinâmica ciumenta sob o ponto de vista masoquista, ou seja, quando o modelo do ideal do eu enquanto fonte de identificação simbólica perde sua função ou fica enfraquecido, o supereu enquanto imperativo do gozo, conforme Lacan, 1985 apud Nasio, 1988, clama por um prazer primitivo que reproduza a relação incestuosa com a mãe. Manifesta-se então, no ciumento um supereu cruel seguindo os moldes da melancolia (Freud, 1917 [1915]), que responsabiliza o eu pela perda do objeto e pelo desejo de traição, efeito da identificação com o rival, e obriga-o a se submeter a toda e qualquer exigência superegóica para garantir um mínimo de prazer.
No melancólico o supereu é muito forte e a culpa pelo desejo de superar o rival abre espaço a um desejo de autodestruição que resulta em anular-se subjetivamente, como acontece nas depressões. Assim, podemos pensar que existe um núcleo masoquista no ciúme depressivo, mencionando uma ferida narcísica sempre aberta.
Freud (1923) menciona a dinâmica acima descrita referindo-se à pulsão de morte:
Se nos voltarmos primeiramente para a melancolia, descobrimos que o superego excessivamente forte que conseguiu um ponto de apoio na consciência dirige sua ira contra o ego com violência impiedosa (...). O componente destrutivo entrincheirou-se no superego e voltou-se para o ego. O que está influenciando agora o superego é, por assim dizer, uma cultura pura do instinto de morte (...).
A situação acima mencionada por Freud pode ser vista como presente em casos de ciúme patológico, podendo de fato, levar o ciumento, em casos graves, a morte real através do suicídio dito “por amor”, bem como fazer do outro, objeto de violência e colocar a pulsão de morte em ação.
Na paranoia, os ciúmes são usados para repelir tanto os impulsos para infidelidade, quanto para a homossexualidade. As duas classes de impulsos inconscientes também desempenham certamente um papel nos ciúmes normais. Os impulsos têm sua aparição todas as vezes que uma necessidade de reprimir os impulsos para a infidelidade e para a homossexualidade coincide com a característica da intolerância da perda do amor. A mescla de depressão, agressividade e inveja com que o indivíduo ciumento relaciona a perda do amor revela uma intolerância a esta perda, e o medo da perda do amor é mais intenso naquelas pessoas para as quais esta perda significa uma diminuição da autoestima (FENICHEL, 1966).
O ciúme patológico pode ser definido como medo infundado e exacerbado da perda do “objeto” para um rival. Podemos até fazer uma relação com transtorno obsessivo compulsivo, devido aos rituais de verificação ao qual o indivíduo verifica os objetos pessoais do companheiro, tenta comprovar se a pessoa estava realmente onde mencionou e com quem estava, verificando as roupas à procura de bilhetes ou alguma pista, como forma de tentar diminuir a ansiedade causada pela insegurança e o medo da perda. No entanto, mesmo quando estes rituais são atendidos, o ciúme não diminui e a insegurança permanece. A pessoa torna-se obcecada por descobrir algo ou provar que tem motivos para sentir ciúme, tentando reduzir a sensação de ansiedade e angústia.
O ciúme é um afeto onde se encontram misturados: a dor de ter perdido o amor da pessoa amada; a integridade da imagem narcísica; o ódio pelo rival, bem como as repreensões que são feitas a si mesmo por não ter conseguido conservar sua relação (NASIO, 1997).
BIBLIOGRAFIA
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