top of page

O ESSENCIAL É INVISÍVEL AOS OLHOS ...  Antoine de Saint-Exupéry

by Sandra Regina Barboza Costa  - Psicóloga e Psicanalista em Jundiaí               

                                                                                    Sentidos - Zélia Duncan

                                                               Não quero seu sorriso
                                                               Quero sua boca
                                                               No meu rosto
                                                               Sorrindo pra mim

                                                               Não quero seus olhares
                                                               Quero seus cílios
                                                               Nos meus olhos
                                                               Piscando pra mim

                                                               Transfere pro meu corpo
                                                               Seus sentidos
                                                               Pra eu sentir
                                                               A sua dor, os seus gemidos
                                                               E entender porque
                                                               Quero você!

                                                               Não quero seu suor
                                                               Quero seus poros
                                                               Na minha pele, explodindo de calor...

 

“Nada há no intelecto que primeiro não tenha estado nos sentidos”  Aristóteles

 

“ O qual nos fez também capazes de sermos ministros de um novo testamento, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata e o espírito vivifica”. 2 Coríntios 3:6. Tudo acontece primeiro no invisível para depois ser revelado...

 

Freud,  1926 diz que, “Há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante caesura do ato do nascimento nos permite saber”.

Vários profissionais da saúde recorrendo à hipnose para alcançar melhores resultados terapêuticos observam fatos surpreendentes de pessoas que estavam em transe e que regrediam espontaneamente a memórias do seu nascimento e de sua vida pré-natal. Embora essas memórias sejam negadas por falta de uma explicação plausível, a existência de memórias pré-natais e do nascimento em crianças e adultos tem se expandido. Especialistas nos alertam que não é certo afirmar que o sistema nervoso do recém-nascido é “imaturo”, a mielinização insuficiente é hoje declarada irrelevante. Sabemos hoje em dia, que sete semanas depois da concepção há endorfinas circulando no organismo do embrião, indicando que os sistemas endócrino e imunológico, os quais constituem partes vitais de um sistema de intercomunicação, estão se desenvolvendo e funcionando mais rapidamente do que o cérebro.

Terapias regressivas por meio da hipnose, bem como a psicanálise têm flagrado, no aqui e agora do encontro analítico, evidências de registros traumáticos pertencentes a um período muito inicial da existência humana. Até mesmo doenças orgânicas, segundo dados científicos, que mais matam na vida adulta têm sua origem na infância.

Segundo Joanna Wilheim, 1997, a história de nosso nascimento não começa com a experiência intrauterina, mas sim com o nascimento de cada uma das duas células reprodutoras que nos deram origem, a saber, o espermatozoide e o óvulo. Tudo que ocorre em nossa vida desde que éramos espermatozoide de um lado e óvulo de outro têm um registro feito de uma memória celular como uma espécie de banco de dados inconsciente. Neste momento, podemos pensar que para nascer,  este bebê necessita ser desejado,  desde o início, desde a concepção e, provavelmente, antes disso, através do desejo e da aceitação daquele que está por vir, nas mentes dos pais. O traumático não é o nascimento, mas a versão que o sujeito constrói da forma como nasceu.  

A presença ou não do desejo, segundo Antonio Muniz de Rezende, apud Maria José Franklin Moreira, 1994, diz:

 

(...) “corresponde a um pleno ou a um vazio na percepção afetiva a que o ser humano tem de si mesmo. Um vazio que nenhum outro afeto é capaz de preencher, uma vez que se trata de um desejo para ser ou não ser”. Nosso desejo, no fundo, é a confirmação do desejo que nossos pais tiveram a respeito de nosso vir a ser e de nossa preserveração na existência. A ausência do desejo para ser, deixa um vazio que prepara um espaço para o suicídio. Ou então, na tentativa de evitar o suicídio, o indivíduo “enche a cara”, para livrar-se do vazio.

 

Interessante voltarmos para o encontro do espermatozoide com o óvulo. O espermatozoide armazenado no saco escrotal de seu pai por um período de aproximadamente dois meses, é ejaculado dentro da vagina daquela que virá a ser sua mãe e em companhia de centenas de milhões iguais a ele se depara com um terreno que pode ser bastante hostil e pode apresentar, ocasionalmente, condições desfavoráveis, como um alto teor de acidez acima daquilo que ele, espermatozoide pode suportar, agindo sobre suas caudas e paralisando-as. Batalhando pela vida os espermatozoides secretam uma enzima que tem o poder de neutralizar esta condição desfavorável, permitindo-lhes avançar. Nesta batalha, alguns espermatozoides desorientam-se e outros são chamados pelo óvulo. Lembro aqui, que é o óvulo (feminino) quem “escolhe” os espermatozoides dentre os quais irá se deixar penetrar. Para tanto, as células que envolvem o óvulo secretam uma substância química que atrai a uns e não a outros. É como se o invisível revelasse o encontro dos pais já na fecundação, na escolha, no desejo, na atração mútua.

Finalmente os poucos espermatozoides que restaram desta batalha  aproximam-se das cercanias do óvulo, depois de ter nadado contra a corrente e de ter enfrentado outro inimigo mortal, ou seja, as células assassinas do sistema imunológico da mãe, cuja missão é detectar todo e qualquer corpo estranho e atacá-lo para matar. Enfrentar o grande Outro não é nada fácil.

Então os diminutos espermatozoides “vestem” uma capa protetora para esconder os seus antígenos, com o que conseguem burlar a vigilância da sentinela postada para não deixá-los passar. Após atravessar as linhas inimigas, um pequeno grupo de sobreviventes chega às portas do óvulo, que para eles se configura imenso: o óvulo é 85 mil vezes, maior que o espermatozoide! Cercam-no, nadando em volta.

Um punhado de espermatozoides começa a operação "penetração". Trabalham em equipe, secretando a enzima cujo efeito é dissolver a membrana protetora que envolve o óvulo e permitir a passagem de um. Finalmente um consegue! Pula para dentro, literalmente mergulhando de cabeça. Neste momento, uma contra ordem elétrica se produz na membrana do óvulo, que se fecha, impedindo qualquer outro de entrar. Até parece a mãe, o grande Outro, quando se fecha com o bebê.

A cabeça do espermatozoide mergulha dentro do óvulo e a cauda que lhe dava locomoção e liberdade, fica de fora no momento da penetração. Agora que o espermatozoide está dentro do óvulo, o mesmo aumenta quatro vezes de tamanho em relação à dimensão original e abre-se, dando passagem ao núcleo contido dentro dele, núcleo este que traz toda a bagagem genética do pai. Uma vez liberado, ele se encaminha em direção ao núcleo que o óvulo liberou. É um indo em direção ao outro, em movi­mento de mútua atração, até que se encontram abrindo-se um para o outro num grande amálgama fusional.

Na relação mãe, pai e filho podemos dizer que acontece algo semelhante. Para que o pai exerça sua função a mãe precisa liberar passagem. O sujeito tem toda a bagagem do pai, mas necessita desprender-se da mãe para poder usar a bagagem. O grande núcleo que o óvulo liberou é o lugar que a mãe dá ao filho.

Antes da fecundação, há que se ter um indo e vindo primeiro entre os pais, um indo em direção ao outro, movimento de mútua atração, até que se encontrem abrindo-se um para o outro numa grande amálgama fusional, assim como o é na relação mãe filho, para então, só depois, esse pai que outrora já fora respeitado e também amado e desejado possa entrar na relação mãe – bebê.

Coloco o Complexo de Édipo como aquilo que vem realizar no visível o que já foi feito no invisível desde o tempo da fecundação, pois assim como na fecundação a mãe dá lugar ao pai para que se forme o filho.  Para Lacan, o pai é o personagem principal do drama edipiano, seja no Édipo masculino, seja no feminino.

 

“ Não existe a questão do Édipo quando não existe o pai, e, inversamente, falar do Édipo é introduzir como essencial a função do pai.” Lacan, 1956-67.

 

“ No complexo de Édipo, o status do pai é o de uma metáfora: ele é o significante que vem no lugar de outro significante. O significante “pai” vem no lugar do significante “desejo da mãe”. O pai significa o desejo da mãe. Em outras palavras, para a criança seu pai é também um homem, o homem que a mãe deseja.” Nasio, 2007, p. 139.

 

Como diz Nasio, o Édipo é um desejo sexual próprio de um adulto, vivido na cabeça de uma criança e no corpo de uma criança de quatro anos cujo objeto é os pais. Começa com a criança, menino ou menina, sexualizando os pais e termina com a dessexualização desses pais que desembocará finalmente na identidade sexual adulta dessa criança. O Édipo revela desejos incestuosos vivido pela criança no cerne da relação com seus pais. É uma fantasia sexual forjada inocentemente pelo menino ou pela menina para aplacar o ardor de seu desejo; é também a matriz de nossa identidade sexual de homem ou mulher, pois é durante a crise edipiana que a criança sente pela primeira vez um desejo masculino ou feminino em relação ao genitor do sexo oposto e, é ainda uma neurose infantil modelo de todas as nossas neuroses adultas. É uma fábula simbólica que põe em cena uma criança encarnando a força do desejo, e seus pais encarnando tanto o objeto desse desejo quanto o interdito que o refreia. O Édipo é a chave-mestra da psicanálise, que gera e organiza todos os outros conceitos psicanalíticos e justifica a prática da psicanálise. É o drama infantil e o inconsciente que todo analisando representa quando em análise e em parceria com seu analista, conforme Nasio, 2007, p. 16.

Voltando para a odisseia do óvulo, que também navegou embora bem menos do que o espermatozoide e em águas bem menos perigosas e turbulentas, lembro aqui, que ele é um só, enquanto o espermatozoide era um entre centenas de milhões. O óvulo é grande, forte, com uma reserva proteica muito maior do que a do espermatozoide. Sobretudo, ele está dentro de sua própria "casa". Ou melhor, dentro da casa de sua própria mãe. O ambiente que o cerca é um ambiente familiar e não o ataca. Geneticamente tem as mesmas células daquele corpo de mãe. Não há antígenos seus mobilizando ataque de anticorpos. Não há nenhuma guerra a declarar. Não há sentinelas inimigas a burlar, ou seja, não há conluio, nem soldado inimigo postado para atacá-lo e exterminá-lo. Na relação mãe, pai e filho, podemos dizer que a mãe é familiar ao filho, mas o pai, por vezes é visto como inimigo, por isso precisa ser apresentado e integrado.

O óvulo sofre uma queda, uma experiência deveras desagradável, pois ao ser expelido pelo ovário, cai na cavidade abdominal, sem direção; lá os extensores da trompa o apanham para conduzi-lo ao duto no qual irá se encontrar com o seu par. Assim também o é a mãe, necessita, de direção, apoio, companhia.

O óvulo não possui mobilidade própria; é carregado pelos cílios da trompa, que o vão levando devagarzinho em direção àquele lugar onde deverá se "casar" com o seu par, ou seja, a mãe pode escolher seu par, mas suas motivações são inconscientes. Encontro e casamento. Um dentro do outro. O pequenino contido pelo grande, o grande contendo o pequenino. Podemos considerar que neste momento dá-se o primeiro nascimento do novo ser. Tão logo se fundem os núcleos e é produzido o amálgama cromossômico, o óvulo deixa de ser o que era antes, o espermatozoide deixa de existir na sua identidade original, e nasce o novo ser. Dentro de este ser se dá duas experiências, uma positiva e a outra negativa. A positiva é uma explosão de vida, pulsão de vida representada pela ligação amorosa estabelecida. Há uma fantástica expansão em relação ao estado anterior de compressão dos genes existentes antes da liberação, expansão esta que, ao se dar, libera muita energia. A negativa, pulsão de morte, manifestação da agressividade, se dá pela sua primeira experiência de rejeição na vida, pois tão logo ele passa a existir, é identificado como corpo estranho pelo sistema imunológico da mãe.

A bagagem genética do óvulo que era da mãe foi acrescida da bagagem genética do espermatozoide que era do pai. A nova composição genética contém a mistura dos dois, constituindo, portanto, uma bagagem genética diferente da ovular original, que chama contra si os anticorpos defensores do organismo materno. Neste momento o bebê recebe um importante registro, o registro do sentimento de rejeição. Constitui-se neste momento a primeira matriz deste sentimento, que é um sentimento dramático, possante, tão conhecido da grande maioria dos seres humanos que a ele costumam reagir com muito sofrimento. Este ataque por parte do sistema imunológico da mãe ao concepto, além de resultar no imprint da matriz do sentimento de rejeição, também irá cunhar o imprint da matriz de outro sentimento, ou afeto, muito básico e fundamental: o da angústia, angústia de aniquilamento, de vida colocada em uma situação de risco extremo, vida ameaçada de ser destruída. Podemos pensar em neurose de angústia? Ansiedade? Estresse Pós-Traumático?

 O óvulo acaba de ser fecundado, há fusão dos núcleos, um novo amálgama celular. Vinte horas depois da fusão, dar-se-á a primeira divisão celular, a partir do que a cada doze ou quinze horas, dar-se-á nova divisão. As divisões continuam, serão quatro, depois oito, dezesseis, trinta e duas células e assim por diante. Este estágio é conhecido pelo nome de mórula, porque sua aparência lembra a de uma amora.

A mórula continua sua descida pela trompa, levada pelos cílios. Este tempo de percurso dentro da trompa é muito crítico. O concepto está exposto aos ataques fisiológicos provenientes do organismo materno, que ameaçam a sua sobrevivência. As estatísticas informam que cerca de 75% dos óvulos fecundados são destruídos na trompa antes de alcançarem o útero. Portanto, todos nós que alcançamos o útero, podemos ser considerados vitoriosos.

A mórula, aparentemente uma amora, me faz pensar em amor-a. Faz-me pensar sobre a importância do desejo, amar e ser amado. O amor possibilita o outro vir a ser sujeito.

Nos dez dias que se seguem à concepção, este pequeno aglomerado de células em constante multiplicação faz a sua descida até o útero. O blastócito, composto agora de cerca de cem células, atravessa uma abertura estreita existente na passagem entre a trompa e o útero e, num formidável salto, despenca como uma bola no vazio.

O blastócito, após ter aterrissado no útero, vai procurar um lugar para se nidar. Movimenta-se e procura um lugar seguro - o "seu" lugar - para se implantar. A mãe dá lugar para ser, mas antes precisa romper a bainha contensora, uma espécie de invólucro protetor que o envolve. Quebra-a, livra-se dela. A massa celular está agora liberada para se ligar à membrana acolhedora do útero. Há novamente registro de um movimento de grande expansão, é a massa celular saindo do estado de compressão. Neste momento, inicia-se a nidação. Da massa celular saem raízes que vão se fixar na parede uterina. É o útero, mãe, adotando o concepto. Contam-nos os imuno-embriologistas que neste instante se produz uma espécie de pacto de não agressão no nível celular. O blastócito produz um muco cujas propriedades químicas visam neutralizar o efeito provocado pelos antígenos sobre a mucosa do útero, que de outra forma responde com irritação agressiva, visando a sua destruição e consequente eliminação, lembrando que, por vezes, tal pacto não se realiza.

A não realização do pacto entre mãe e filho (a) instala uma guerra. O concepto, movido pelo seu instinto de vida, trava verdadeira batalha para sobreviver, enquanto, do outro lado, o organismo materno - movido por sua vez pelo seu instinto de vida - defende-se do "invasor-agressor". Também desta experiência, de nidação ou implante, ficarão registros significativos na nossa matriz básica, seja do sentimento de adoção, de aceitação e acolhida, seja do sentimento de rechaço ou rejeição.

No blastócito, estágio inicial do desenvolvimento embrionário, começa a diferenciação celular. Uma parte se destina à formação do embrião e outra parte se destina à formação da placenta, que é um órgão do embrião formado a partir de células suas. Esta etapa me faz refletir sobre a autonomização progressiva, naquilo que possibilita gerar crescimento ou naquilo que pode obstruir ou impossibilitar seu crescimento, parecido com o estádio do espelho.

Assim, como Lacan diz da fase em que o bebê está mergulhado em sua impotência motora e dependente da mãe que o amamenta, o feto também está nesta fase totalmente mergulhado em sua impotência e dependência materna para o seu bom desenvolvimento.

Com quatro semanas o embrião mede seis milímetros, tem um corpo com uma cabeça, um tronco e uma cauda. Apresenta rudimentos de cérebro, espinha, tubo digestivo. O sistema nervoso começa a se formar no 18º dia, quando também se formam rudimentos dos olhos. A boca abre-se pela primeira vez em torno do 28º dia e o coraçãozinho rudimentar começa a bater, bombeando sangue para o fígado e a aorta.

Com cinco semanas, mede um centímetro. Começam a despontar pernas e braços. Surgem pela primeira vez movimentos bruscos espontâneos.

Com seis semanas, o embrião mede um centímetro e meio. O seu coraçãozinho apresenta de 140 a 150 batimentos por minuto, duas vezes mais que o de sua mãe. Suas mãozinhas estão desenvolvendo dedos.

A partir deste momento, o embrião responde ao toque com movimentos amplos e generalizados. Começam a aparecer os primeiros reflexos: se sua mãozinha ou pezinho tocar a parede do útero, os dedos ou artelhos se contrairão.

Se for feito um eletroencefalograma, seu traçado será semelhante ao do adulto.

Com sete ou oito semanas, o embrião é capaz de realizar movimentos muito simples de flexão de um braço ou de uma perna, pulso, cotovelo ou joelho. Um ligeiro toque em sua face fá-lo-á desviar a cabeça.

O movimento é vital para o bom desenvolvimento dos os­sos, das juntas e das experiências sensoriais do feto, ou embrião, incluindo aquelas que derivam do movimento, e que são essenciais para o desenvolvimento de seu cérebro.

O sangue do embrião absorve proteínas, gorduras e açúcar da placenta para o constante processo de construção de suas células, e oxigênio para alimentar o processo.

Com oito semanas, ele mede quatro centímetros; neste ponto do desenvolvimento, os biólogos e embriologistas passam a se referir ao ser em desenvolvimento como feto. O feto vive dentro de um saco amniótico contendo um líquido que o acolchoa e protege. Este líquido tem um teor de salinidade semelhante ao do mar primitivo. Nesse meio ambiente flutuante e sem peso, os membros e o corpo têm amplo espaço para se movimentar, mantendo suas articulações flexíveis.

 Dentro do corpo do feto, todos os órgãos já estão no devi­do lugar, tudo o que se encontra em um ser humano a termo já está formado. Ele agora é capaz de movimentar a cabeça, os braços e o tronco com facilidade. Se a palma de sua mão for tocada, ele reage, fechando-a. Responde às mudanças de posição de sua mãe. Se os seus lábios ou o seu nariz forem roçados, responde com um movimento de curvatura do pescoço para se afastar do estímulo. Se um fio de cabelo esbarrar em sua face, afasta a cabeça e estica os bracinhos para afastar o cabelo. Fetos de oito semanas foram vistos fazendo um movimento para afastar ou apanhar com a mão a agulha introduzida por ocasião do exame de amniocentese.

Sua placenta produz os hormônios necessários para a manutenção da gravidez.

Entre a 10º e a 12º semana após a concepção, o feto come­ça um vigoroso programa de exercitação física, rola de um lado para o outro, estende e flexiona as costas e o pescoço, agita os braços, dá chutes, flexiona os pés, abre a boca, coça a cabeça, faz caretas, esfrega os olhos, engole o líquido amniótico, os pulmões primitivos e vazios expandem-se e contraem-se. Esta movimentação se mantém, sem muita alteração, por todo tempo da gestação. É uma movimentação graciosa e espontânea, uma coordenação que revela um tipo de inteligência direcional, bem como revelação de variações individuais­.

Com quatorze semanas, engole, chupa e respira. É capaz de movimentar os braços juntamente com as pernas e, às vezes, pode-se ver o feto com as mãozinhas levantadas. Começa a apresentar expressões faciais de agrado ou desagrado.

Com quinze semanas o feto apresenta todos os movimentos presentes em fetos a termo.

Com dezesseis semanas, começa a desenvolver o sentido do paladar. Nesta idade, as papilas gustativas já estão desenvolvidas, e surgem as preferências de gosto. O feto faz careta e para de engolir quando uma gota de substância amarga é colocada no líquido amniótico, enquanto uma gota de substância doce provoca a aceleração da ingestão do líquido. Reage da mesma maneira à nicotina e ao álcool ingeridos pela mãe, com o que evidencia o desagrado que lhe causam.

Na 19º semana, os seus movimentos começam a ficar mais coordenados, contrastando com os movimentos iniciais, que eram reflexos mais primitivos. Começa a dar "passos"; é capaz de ficar ereto e impulsionar o corpinho para frente, sustentando-se sobre uma das mãos.

Na 26º semana da gestação, o feto abre os olhos pela primeira vez e, a partir deste momento, comportar-se-á como um recém-nascido; fecha os olhos quando dorme e abre-os quando está acordado.

Com 28 semanas todos os fetos sadios piscam os olhos.

Até o sétimo mês o feto pode movimentar-se livremente, até mesmo virar cambalhotas, mas a partir do oitavo mês, com o ambiente mais apertado e quase todo ocupado, começará então a fazer os movimentos preparatórios necessários para o seu nascimento. Ao sentir-se pronto e maduro, organiza­-se para prosseguir o seu desenvolvimento fora do corpo de sua mãe e separado dela.

Como todos os tipos de aprendizado são constatados nas primeiras horas e dias após o nascimento, conclui-se que o aprendizado começa antes do nascimento. Estudiosos relatam que a origem da capacidade de aprendizado se dá no período pré-natal. O período de nove meses que vai da concepção ao nascimento, revela, através de estudos científicos, a presença de sinais de comportamento inteligente a partir do início do período gestacional, como a capacidade para autogerir-se mentalmente; adaptar-se e adequar-se a novas situações; selecionar condições; e aproveitar experiências.

Pesquisas realizadas visando à aferição da presença e do desenvolvimento de funções senso perceptivas no feto revelam respostas emocionais de medo, pânico e choque em embriões e fetos. Evidências de ­presença de emoção no feto foram observadas por meio do fenômeno do vagitus uterinus, que é um tipo de choro no feto.

Quanto à audição, fetos observados entre as 16 e 32 sema­nas de gestação foram vistos reagindo com um piscar de olhos, ou com um estremecimento do corpo ou dos membros, a ruídos aplicados ao abdômen da mãe. Os ultra-sonografistas observam que o feto reage com sobressaltos a qualquer ruído repentino. Experiência realizada em maternidade inglesa revelou que fetos de quatro a cinco meses acalmavam-se quando escutavam música de Vivaldi e Mozart, e ficavam agitados ao som de Brahms, Beethoven e rock, com o que pareciam revelar desagrado. A existência de condicionamento pré-natal para música foi constatada em recém-nascidos cujas mães cantarolavam determinada cantiga popular durante todo o período gestacio­nal. Quando submetidos a testes após o nascimento, estes bebês evidenciaram preferência pela melodia conhecida, enquanto um grupo de bebês de controle não evidenciou tal preferência.

Pesquisas realizadas com uso de tecnologia avançada na Escandinávia revelaram que os fetos recebiam e armazenavam padrões de fala que lhes eram transmitidos pelas suas mães. Fotografias e filmes mostraram que os fetos exercitavam dentro do líquido amniótico movimentos neuromusculares que leva­riam, em contato com o ar,  ao choro e à vocalização. Estu­dando gravações de choro de prematuros extremos de novecentos gramas, verificou-se, em alguns casos, uma correspondência específica do choro com as entonações, ritmos e outros padrões da fala de suas mães. Estes espectogramas coinciden­tes de mãe e feto por volta dos cinco meses são evidencia não apenas da presença da audição como também da linguagem no útero. Equipe de pesquisadores encontrou outra evidência de aquisição de linguagem no feto, revelando que recém-nascidos, de mães mudas, que não choram ao nascer, ou que, tendo chorado, apre­sentaram um choro estranho como se lhes tivessem faltado aulas no útero.

Segundo estudiosos do assunto, o feto ouve a voz de sua mãe já no quarto mês de gestação, e a qualidade desta comunicação pode influenciar, no futuro, seu desejo de comunicar-se. Caso a voz da mãe seja cronicamente áspera e zangada, poderá ficar associada a uma experiência desagradável e afetar a sua futura disposição para a escuta e a comunicação. Pesquisas revelam, ainda, que recém-nascidos discriminam e preferem a voz de sua mãe a outras vozes, conhecimento que devem adquirir durante sua experiência intrauterina. São capazes de variar a frequência de sua sucção para obter o som da voz de sua mãe, em vez do som de outra voz feminina.

O choro expressa dor, angústia ou sofrimento. Reações de susto são evidenciadas por alterações somáticas no feto.

Quanto à experiência onírica do feto, sabe-se hoje que começa a sonhar a partir da 23ª semana gestacional. Sabemos que sonhar é importante e que é um meio de elaborar experiências internas. Supõe-se assim, que os fetos sonhem com qualquer experiência que tenham tido até então. Durante o sono com sonhos, observam-se alterações nas expressões faciais, que revelam perplexidade, desprezo, ceticismo ou divertimento por meio de caretas, choramingos, soluços, sorrisos, estremecimentos do rosto e das extremidades, alteração no ritmo dos batimentos cardíacos e respiratórios, mudanças bruscas de posição de membros e corpo.

Os primeiros sorrisos ocorrem durante o sono com sonhos. Expressam um estado emocional prazeroso. Antigamente, costumava-se negar o significado dos primeiros sorrisos observados em recém-nascidos; dizia-se que eram gases ou espasmos musculares. No entanto, os sorrisos são expressões preciosas de sentimentos; representam comunicações significativas e positivas a serem consideradas e valorizadas. Alguns recém-nascidos chegam a dar risadas enquanto estão dormindo. Tanto os sorrisos quanto as risadas representam experiências cognitivas, são pensamentos acompanhados de uma emoção de alegria.

Fantástico é podermos ter acesso a todo esse invisível aos olhos, mas essencial à formação do nosso “eu” biopsicossocial, através de nossas próprias experiências vivenciais, bem como pela herança genética que o espermatozoide traz no núcleo contido em sua cabeça e que entrega ao óvulo quando estes se encontram, masculino e feminino, misturando as bagagens para dar continuidade a viagem pela vida, denominada por alguns e adotada por mim de grande caldeirão onde tudo acontece; a vida da gente como ela é.

Pesquisadora psicanalista italiana Alessandra Piontelli, assim como Freud, em sua experiência como analista, tratando de adultos com comprometimentos emocionais gra­ves, percebe com frequência, que tais comprometimentos provinham da infância e até mesmo do período intra-uterino. Percebe que alguns bebês nascem com uma disposição eviden­te para a vida, enquanto outros são surpreendidos pela apatia. Isso lhe traz questões do porque certas crianças não conseguem esque­cer o seu passado pré-natal e por que outras a ele retomam sem­pre que as circunstâncias externas se lhes configuram adversas. Pergunta-se, ainda, se é devido a fator genético ou ambiental formativo ou constitucional. Em sua pesquisa surpreende-se com as diferenças individuais com que cada feto se manifesta no mundo intrauterino e com os seus objetos de relação, a saber, a placenta e o cordão umbilical. Cada feto, em sua pesquisa, apresentava um desempenho e um comportamento muito próprio e marcante, provocando naqueles que assistiam ao exame exclamações do tipo: “Que bebê calmo!", "Este vai ser um nervosinho", "Como este é pensativo", "Esta vai ser uma bailarina", "Olha este usando a placenta de travesseiro!", "Como trata mal o seu cordão umbi­lical!” Nas observações realizadas nos meses subsequentes ao nasci­mento, a doutora Piontelli, apud Wilheim, 1997,  constatou que as crianças continuavam a apresentar as mesmas características por ela observadas durante o período pré-natal e por ocasião de seu nascimento, concluindo que os fetos diferem em suas identidades individuais assim como diferem os adultos e que uma perso­nalidade marcante e bem definida se manifesta desde o começo de sua existência intrauterina, o que nos faz lembrar Freud, quando este diz: “Há muito mais continuidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante caesura do ato do nascimento nos permite saber”.

Isso nos faz pensar que temos memória desde a nossa fecundação, bem como memórias que permanecem intactas por muito tempo, em certos casos por até quase um século. Antigamente psicólogos e neurologistas relacionavam memória com córtex cerebral e presença de linguagem verbal. No entanto, pesquisadores modernos propõem que a memória não fica restrita ao cérebro e que o seu armazenamento dá-se fora dele. Estudiosos do assunto atualmente concordam que a memória não constitui apenas um, mas vários sistemas, nem sempre unificados e que funcionam independente, automática e deliberadamente.

Existem vários tipos de memória regidos por sistemas diversos. Existe memória recente e memória antiga, memória semântica, auto-biográfica, afetiva perceptiva, motora, de reconhecimento, de recordação; existem registros ou imprints embrionários, bem como memória celular. Podemos chamar de memória celular os registros mnêmicos (imprints) das experiências pelas quais passam as duas células reprodutoras básicas - espermatozoide e óvulo - e o concepto até depois da nidação, quando surge o embrião. Atualmente isso pode ser creditado às numerosas evidências de memórias e traumas de nascimento que se têm apresentado nos últimos cem anos. Por outro lado, o emprego cada vez maior de técnicas regressivas, bem como os avanços da psicanálise têm apontado para a presença de imprints de vivências traumáticas, tanto pré-natais como ao nível da concepção e até mes­mo anteriores a ela. Podemos pensar aqui, aquilo que Freud já dizia, que esses imprints podem ser lembranças daquilo que foi falado a respeito da sua história de vida ou seja, experiências que foram decodificadas por outras pessoas.

Já em 1900, Freud, em A Interpretação dos Sonhos, refere-se a fantasias relacionadas com a vida intra-uterina, dizendo:

 

"O ato do nascimento é a primeira experiência de angústia do indivíduo, vindo a se constituir na fonte e no protótipo do afeto de angústia". E, em 1909 acres­centa: “Aprendi a levar em conta as fantasias relacionadas com a vida intrauterina”.

 

Na década de 1970, na Inglaterra e América do Norte, fora do âmbito da psicanálise propriamente dita, houve um verdadeiro “boom” na exploração dos níveis mais profundos da mente por meio de terapias regressivas. Nos Estados Unidos e Canadá atualmente há grande número de terapeutas que, mediante o emprego de técnicas regressivas variadas, trabalham com resgate de memórias tanto pré-natais como de nascimento, traumáticas e não traumáticas; assim como daquelas relacionadas com a experiência da concepção e dos momentos que se seguem a ela, a experiên­cia na trompa, a nidação e, todas as experiências celulares anteriores à concepção, do óvulo e do espermatozoide. Estas situações têm sido trabalhadas visando à investigação e tam­bém a um efeito terapêutico, segundo creem estes terapeutas, mediante a promoção de catarses dos pontos de trauma.

O norte-americano David Chamberlain trabalha explorando, sobretudo as memórias do nascimento, mediante empre­go da técnica de hipnose. Em um livro publicado em 1988 rela­ta suas experiências clínicas, fornecendo evidência da veraci­dade das informações referentes a detalhes de nascimentos obtidas em sessões de hipnose com pacientes, e confirmadas por suas mães, igualmente submetidas à hipnose.

Grof, apud Wilheim, 1997, pioneiro no emprego do LSD para efeito de regressões profundas desde a década de 1960, acumulou e publicou vastíssimo material recolhido em sessões de regressões com pa­cientes sobre registros inconscientes existentes na mente, dos traumas experimentados durante o processo do nascimento. Relata em seus livros as formas em que se encontram represen­tadas na mente as várias etapas, sentidas e registradas como traumáticas e ameaçadoras, do nascimento.

Josephine Van Husen, empregando outras técnicas regres­sivas, recolheu vasto material sobre registros mentais traumáticos de pacientes que sobreviveram a tentativas de aborto e de sobreviventes de abortos praticados em que um gêmeo teria sido abortado. Tanto o material recolhido por ela como aquele recolhido por Grof evidenciam as profundas marcas deixadas na mente por estas experiências traumáticas pré-natais, cujas repercussões psicológicas se manifestam na vida pós-natal.

O californiano William Emerson e o australiano Graham Farrat, promovendo regressões mediante o emprego de técnicas respiratórias, buscam criar situações que permitam a descarga catártica da experiência traumática original, relacionada com o nascimento e com todo o período pré-natal, considerando os imprints, mais iniciais, desde a emissão do espermatozoide, do óvulo, o encontro dos dois, a concepção, a multiplicação celular, a descida pela trompa, a queda no útero, o implante e demais registros traumáticos ocorridos durante a experiência intrauterina. Emerson desenvolveu uma técnica pioneira por meio da qual diagnostica e trata recém-nascidos marcados por traumas pré e perinatais, obtendo, segundo suas observações e depoimentos, uma completa remissão dos sintomas.

A ABREP – Associação Brasileira para o Estudo do Psiquismo Pré e Perinatal através de sua fundadora Joanna Wilheim e outros estudiosos do assunto, como Myriam Szejer, psicanalista francesa e Michel Odent, obstetra, têm contribuído em sua luta incansável, para trazer-nos conhecimentos nascentes e surpreendentes sobre a vida psíquica dos fetos e dos recém-nascidos, fundamentais para a compreensão da construção psíquica do sujeito.

O trabalho clínico de terapeutas como Melanie Klein, Margareth Mahler, René Sptiz, entre outros, seguindo as geniais hipóteses de Freud, através de suas capacidades perceptivas de investigação excepcionais, permitiu identificar atividades no comportamento do bebê, que trouxeram a compreensão sobre a existência de uma vida psíquica insuspeitada nos bebês. De uma forma detalhada possibilitou trazer dados sobre os momentos no processo evolutivo que resultam na individualidade psíquica do ser humano adulto. Todo esse conhecimento tem-nos fornecido subsídios para o conhecimento da existência e operância dos traumas pré e peri-natias. Isso é muito importante porque estes, quer sejam natais, pré-natais, do momento da concepção ou anteriores a ela, têm o poder de reger a conduta humana, determinando padrões psicopatológicos, psicossomáticos e de comportamento, num movimento regido por repetição compulsiva que somente pode ser desfeita mediante a identificação verbalizada, interpretada, ou através da ab-reação catártica (descarga emocional terapêutica) seguida de uma verbalização que a conceitua.

A Doutora Myriam Szejer trabalhando numa maternidade em Paris, trouxe para o Brasil experiências incríveis a respeito de seus atendimentos à recém-nascidos através do método psicanalítico. Ela é psiquiatra infantil e psicanalista de formação lacaniana, discípula de Françoise Dolto.  Szejer fala com os recém-nascidos sempre que a equipe médica na maternidade do hospital Antoine-Béclère, em Clamart, a solicita para intervir em casos de sofrimento e patologias de um bebê ou dos pais. Em seus relatos, Szejer mostra a eficácia de seu método, demonstrando que os bebês muito antes do advento da capacidade de simbolização estão à espera de palavras de que necessitam para intermediar sua inserção no mundo dos humanos, ou seja, estão à espera de palavras para nascer, título de um de seus livros. O trabalho de Myriam Szejer mostra como o bebê é atingido pelas palavras que lhe provocam reações e remissão dos sintomas.

Atualmente, a totalidade da comunidade dos biólogos evolucionistas admite, que a capacidade para a linguagem é inata no homem e é uma construção evolucionista do instinto de sobrevivência, que dá ao homem maior capacidade de aptidão. John Maynard Smith coloca a aquisição da linguagem como o ápice do fenômeno evolutivo, a maior transição no processo de seleção natural.

O bebê biologicamente é um ser distinto do adulto e traz dentro de suas estruturas cerebrais funcionantes nessa fase de imaturidade o potencial do que vão ser as funções que surgirão no adulto. O homem é um ser com capacidade simbólica e sujeito de palavras, programado para viver em sociedade, onde o que o distingue como único na escala da evolução animal é o método de comunicação pela palavra falada e escrita. No bebê, essas funções que se manifestarão no adulto na utilização das palavras como símbolos e veículo de comunicação devem existir numa outra forma de manifestação, ou seja, existem informações no feto e no bebê que o transformarão num “ser falante”.

É neste ponto que o trabalho da psicanálise se faz mais efetivo, uma vez que trabalha com as raízes mais profundas do ser  humano. Precisamente nos pontos de registros traumáticos pré-natais é que se encontram estabelecidas as raízes mais profundas de determinadas psicopatologias, bem como de afecções psicossomáticas, objeto por excelência da psicanálise. Considero que todas as experiências biológicas pelas quais passa o ser desde a sua pré-concepção até o seu nascimento, ficam registradas em uma matriz básica inconsciente.

Freud em 1900 dizia:

 

“No inconsciente nada se esgota, nada é passado nem esquecido (...) e o que costumamos descrever como sendo o nosso caráter baseia-se nos traços mnêmicos de impressões, sendo que aquelas que maior efeito têm sobre nós são precisamente as que raramente virão a ser conscientes”.

 

A comunicação entre mãe e feto se dá por três vias: comportamento, fisiologia e  via empática.

            Até pouco tempo atrás se achava que a placenta funcionava como uma barreira protetora, deixando passar apenas os nutrientes e impedindo que substâncias nocivas chegassem ao feto. Hoje sabemos que a placenta não funciona como barreira protetora, tampouco filtra subs­tâncias tóxicas, nocivas ou perturbações emocionais ao bebê, dentro do útero de sua mãe.

Todo e qualquer estado de perturbação emocional da mãe é acompanhado por alterações bioquímicas que, por conseguinte são transmitidas ao feto pela corrente sanguínea através do cordão umbilical. Sendo assim, o feto irá sentir a mesma perturbação emocional ­sentida pela mãe.

Nos estados de depressão e de melancolia da mãe, além do feto ser afetado fisiologicamente, emocional­mente pode ocorrer outro agravante, a mãe, solicitada por sua profunda tristeza ou entregue à sua depressão, deixa de estar afetivamente disponível para ele, deixando-o só.

 

“A imagem dos pais amados é preservada na mente inconsciente como seu mais precioso patrimônio, uma vez que ele protege o seu possuidor contra o sofrimento da solidão absoluta”, dizia Klein, 1975

 

Assim como no pós-natal, no estádio do espelho, em que a disponibilidade afetiva da mãe é tão necessária, na fecundação e na gestação também a disponibilidade afetiva da mãe se faz necessária para que haja comunicação empática de suma importância para o feto. Evidências revelam que o feto necessita da ajuda da mãe para processar as impurezas e toxinas por ela produzidas e por ela passadas a ele, das quais ele sente necessidade de se livrar mediante uma desintoxicação realizada pela sua mãe para ele. Mas, se o estado emocional da mãe não favorece tal disponibilidade, se ela retira sua libido do contato com este hóspede passageiro que ela se dispôs a albergar, ela o deixa abandonado a uma situação de injusta sobrecarga e desampa­ro, com a qual ele sozinho não tem condições de lidar.

Desta forma fica evidente que a disponibilidade afetiva da mãe é fundamental para que ocorra o desenvolvimento psicoafetivo do indivíduo, de célula a feto, de feto a bebê, de bebê a criança. Lesões provocadas na estrutura emocional do ser por acidentes graves ocorridos na comunicação entre a mãe e o bebê durante o período pré-natal vão constituir imprints traumáticos, cujos efeitos propagar-se-ão durante sua vida como ondas.  Tudo o que lhe vem da vida do corpo materno imprime ritmo a seu desenvolvimento, pois das coisas que a mãe vive durante a gravidez, o feto percebe algo de que poderá lembrar-se e cujo sentido poderá eventualmente vir a procurar após o nascimento, caso este lhe falte. Lembro aqui da forma como Lacan dizia sobre a análise, que o analista não deve interpretar e sim provocar ondas.

Perturbações emocionais são inevitáveis e fazem parte do cotidiano de qualquer grávida. Mas é importante lembrar a existência de recursos, mediante o qual é possível abrandar e até mesmo neutralizar o seu efeito negativo. As marcas deixadas por tais situações vão se constituir em imprints negativos, núcleos geradores de pessimismo e desesperança. As conversas tranquilizadoras que a mãe pode ter com o seu bebê, a loucura necessária como diz Winnicott, visam restituir a ele a sensação de segurança, otimismo e esperança, reforçando e reassegurando a permanência do vínculo de vida entre ambos.

 

“Os sentimentos negativos de abandono, desamparo, pessimismo, desesperança, desconfiança têm suas raízes fincadas na experiência pré-natal. Lembramos aqui que desde as primeiras situações da vida biológica, houve experiências de rechaço fisiológico e rejeição imunológica, que também receberam imprints, deixando marcas negativas. A partir destas, no decorrer da vida, são emitidos sinais negativos do tipo: “não sou desejado”, “não sou querido”, “não sou aceito”, “não sou acolhido”, “não pertenço”, reproduzindo, em outro nível, a angústia sentida pelo ser por ocasião do primeiro registro pré-natal”. (Wilheim, 1997)

 

Neste período absolutamente inicial da existência, a todo trauma bio­lógico corresponde um correlato psíquico. A psicanálise vai, especificamente, trabalhar com os registros afetivos, com os conteúdos mentais de tudo isso, desse grande caldeirão onde tudo acontece, a fim de, quiçá, compreender a viagem do mundo materno para o mundo paterno, ou seja, compreender a viagem do mundo do sentir para o mundo do fazer ser.

Freud, em seu artigo Instintos e suas vicissitudes, 1915, argumenta que a criança possui necessidades fisiológicas que devem ser satisfeitas, sobretudo de alimento e conforto, e que o bebê se torna interessado em uma figura humana, especificamente a mãe, por ela ser a fonte de sua satisfação. Na teoria dos instintos, a vinculação com a figura materna é vista como impulso secundário, ou seja, que o bebê se liga à mãe afetivamente como consequência de esta ser o agente de suas satisfações fisiológicas básicas.

Em 1905, Freud, nos Três Ensaios sobre a Teoria da sexualidade discute detalhadamente as relações recíprocas entre mãe e filho, tentando esclarecer como essas relações asseguram a sobrevivência e como contribuem para o desenvolvimento dos setores psíquicos e somáticos da personalidade. Durante o primeiro ano de vida da criança todo o esforço é reservado à sobrevivência e à formação e elaboração dos instrumentos de adaptação que servem a esse objetivo. Neste primeiro período de vida a criança é indefesa e depende totalmente de cuidados da mãe ou daquela pessoa que venha a fazer essa função. Na medida em que se desenvolve no setor somático, bem como no setor psicológico vai tornando-se independente de seu ambiente. Contudo, seu crescimento e desenvolvimento psicológico são essencialmente dependentes do estabelecimento e progressivo desdobramento das relações objetais significativas. A partir de sua totalidade vai se diferenciando progressivamente neste universo das relações sociais utilizando-se de três princípios reguladores básicos do funcionamento psíquico, postulado por Freud, que são: 1) o princípio do Nirvana, (princípio de constância) estado em que aniquila qualquer excitação e qualquer desejo; 2) o princípio do prazer que tem como objetivo proporcionar prazer e evitar o desprazer, sem entraves nem limites; e 3) o princípio da realidade que modifica o princípio de prazer impondo-lhes as restrições necessárias à adaptação à realidade externa.

A  origem das primeiras relações objetais, ou seja, relações entre mães e filhos, como já disse anteriormente, desde a fecundação, pode nos fazer testemunhar sobre as possíveis relações de âmbito social e transformar esse conhecimento em ferramenta útil para o trabalho preventivo em saúde mental.

No primeiro ano de vida, a criança passa por um estágio de simbiose com a mãe, preparando-a para o próximo estágio, onde serão desenvolvidas as inter-relações sociais, isto é, hierárquicas. Neste primeiro estágio o mundo para o recém-nascido se resume a mãe. Não se distingui dela e se faz único com ela. Seu mundo mistura-se com os papéis inter-relacionados e com os relacionamentos das várias pessoas que constituem sua família ou por vezes,  com a instituição da qual a mesma faz parte, mas a visão de mundo quem passa para a criança é a mãe ou pessoa significativa que supre suas necessidades.

Para Spitz, a criança desenvolve-se progressivamente, passo a passo e distingui estágios até constituir o objeto libidinal. Sua estrutura psíquica inicial apresenta ego rudimentar e desorganizado, revelando desamparo ainda no estágio pré-objetal, estágio este que coincide com o estágio do narcisismo primário, no qual o bebê ignora o mundo ao seu redor. Está insuficientemente organizado em unidades, exceto, até certo ponto, em áreas que são indispensáveis à sobrevivência, tais como metabolismo e consumo alimentar, circulação, função respiratória. Nesta fase percebe o seio materno como parte de si mesmo, se é assim que podemos dizer. Seu aparelho perceptivo é protegido do mundo externo por uma barreira do estimulo extremamente alta. Os estímulos externos só são percebidos quando ultrapassa o limiar dessa barreira do estímulo trazendo-lhe desprazer. Neste período toda percepção passa pelos sistemas interoceptivo e proprioceptivo, suas reações ocorrem a partir da percepção de necessidades comunicadas por esses sistemas.

No estágio não objetal, narcisismo primário, todo estímulo recebido pelo bebê, ainda precisa ser transformado em uma experiência significativa, para então poder tornar-se um sinal ao qual outros sinais serão acrescentados, gradativamente, para construir a imagem coerente do mundo da criança, lembrando que o fator primordial para que isso ocorra advém da reciprocidade entre mãe e filho.

A partir desse início, o funcionamento psicológico irá se desenvolver e consolidar-se no devido tempo. Uma vez estabelecida, a função psicológica será governada, por algum tempo, pela regra do princípio de prazer-desprazer, até que o princípio de prazer seja por sua vez atenuado, embora nunca completamente, pelos mecanismos reguladores do  princípio de realidade. O bebê passa de receptor de estímulos internos para a percepção de estímulos externos, onde o princípio de realidade começa a funcionar.  Explora, experimenta, expande, através de constantes trocas e interações com o pré-objeto. Progride para uma atividade dirigida e para uma ação estruturada, estabelecendo limites de suas capacidades, com padrões de ações trocados entre a criança e o que virá a ser objeto libidinal. Agora o bebê é capaz de reconhecer o rosto humano através da reação de sorriso, dando início às relações sociais no homem, revelando que foram estabelecidos traços de memória e que houve uma divisão do aparelho psíquico.

A palavra aparelho para Freud caracteriza uma organização psíquica dividida em sistemas, ou instâncias psíquicas, com funções específicas para cada uma delas, que estão interligadas entre si, ocupando um certo lugar na mente. Em grego, “topos” significa lugar, por isso Freud, designa a Primeira Tópica de aparelho psíquico, como um “modelo de lugares”, conhecida como Topográfica, constituída por Consciente, Pré-consciente e Inconsciente e a Segunda Tópica, como Estrutural, constituída por Id, Ego e Superego.

Agora que houve uma divisão do aparelho psíquico percebe-se a capacidade de transferir a catexia de um traço de memória para outro de memória, comparando o que está registrado no interior como imagem com aquilo que é percebido externamente, marcando o início de um ego rudimentar.  Aos três meses, ocorre um importante passo de integração, que reúne os diversos núcleos do ego numa estrutura de maior complexidade, formando o ego rudimentar. Ocorre aí uma estruturação na somatopsique onde Ego e Id se separam e o ego rudimentar começa a funcionar, o que se pode observar nas ações desajeitadas das crianças que desde o início se prestam a dominar e defender.

O primeiro ano de vida é o período mais plástico no desenvolvimento humano. É o período em que mais se aprende em tão pouco tempo. O bebê progrediu para uma atividade dirigida e para uma ação estruturada, onde os padrões de ação são trocados entre a criança e o que virá a ser objeto libidinal. Nestas trocas, o bebê experimenta e estabelece limites de suas capacidades atuais. Passo a passo se expande as fronteiras dentro das quais ele traduz em ações dirigidas à pressão de suas pulsões agressivas e libidinais. Spitz, 2004, p.110, lembra que cada estágio se faz para o seguinte estágio cercado de perigos e se o bebê for exposto a um trauma durante essas transições haverá consequências específicas e às vezes sérias incluindo um grave prejuízo da capacidade do adolescente e do adulto para estabelecer a condição da transferência na relação terapêutica, revelando dificuldades para o trato das neuroses.

Sob o aspecto social, as relações objetais perturbadas no primeiro ano de vida, desviadas, impróprias ou insuficientes, têm graves consequências que colocam em risco nossa própria sociedade, revelando socialmente grande incapacidade de relacionar-se. Trabalho em uma Instituição Pública e o que mais vejo, são pessoas comprometidas gravemente na área das relações objetais. São famílias desorganizadas, incapazes de compreender, e, sobretudo de descobrir e de partilhar os vínculos intrincados e cheios de nuanças das relações que nunca tiveram. Recebo para atendimento, famílias, adolescentes e crianças que foram privadas do alimento afetivo que lhes era devido, restando-lhe agora como recurso a violência.

Estamos falando do inconsciente, daquilo que não passa, do recalque, da perplexidade frente ao desconhecido de nós mesmos, que nos traz reflexões implacáveis e angustiantes por saber tão pouco sobre o que é preciso saber. Para Freud as teorias da resistência e da repressão do inconsciente, da significação etiológica da vida sexual e a importância dos acontecimentos infantis são elementos fundamentais do edifício teórico psicanalítico. Lembra que cada um desses elementos articulam-se entre si e formam o edifício, revelando alicerces, andares, paredes e janelas que se abrem para outros campos do conhecimento, considerando até mesmo a geografia do terreno em que se movem. (Mezan, 2008, p. 4)

Mezan, 2008, p. 21, argumenta que remover as resistências é o objetivo terapêutico primordial, para que a expressão da repressão que tornou patogênica a ideia vinculada ao sintoma possa vir à tona e ser verbalizada e ab-reagida.

Freud vai além dos sintomas quando permiti que o doente escolha o assunto de cada sessão, ao invés de tentar sanar os sintomas apresentados. Entende que um mesmo sintoma pode aparecer de diversas formas, em diferentes contextos e momentos, revelando que há uma repetição, que há algo que não passa, que insiste em se fazer compreender. Para tanto, os sonhos e sua interpretação são utilizados como importante ferramenta para preencher amnésias e elucidar sintomas, bem como essencial para a compreensão dos processos mentais.

Na interpretação dos sonhos Freud pode firmar os fundamentos da Psicanálise e revelar suas aplicações, explicações e comprovações como se pode ver em seus casos clínicos, entre outros trabalhos, no Caso Dora e Homem dos Ratos. Freud diz que o sonho permite fugir ao recalque e que é um dos principais meios empregados como método indireto de representação da mente. Menciona que a clínica deve ser ética e não moral. Discute, ainda, a questão das perversões sexuais e questiona a vida sexual normal, evidenciando que os limites e normas são sociais e culturais e que os neuróticos recalcam suas tendências perversas que se tornam inconscientes, dizendo que as psiconeuroses são o negativo das perversões.

Freud dá conta de seus fracassos, mas fica satisfeito por confirmar suas descobertas em A Interpretação dos Sonhos e de como os sonhos se entrelaçam no tratamento analítico possibilitando a elucidação dos sintomas, lembrando a necessidade de implicar o paciente com aquilo que ele está dizendo, trazendo a responsabilidade para si mesmo, deixando de culpar o outro de quem fala e por conseguinte entrar em análise.

Já sabemos como ocorre a fecundação e o nascer, mas o ser ainda tem um longo caminho a percorrer contando sua história, nossa análise pessoal que o diga, tentando responder a questão primeira de quem sou a partir do vínculo estabelecido desde a criação de um ser que pode vir-a-ser sujeito de sua história e do seu pensamento, que é a única liberdade inalienável que os seres humanos possuem, conforme Aisenstein, 2009.

Considerando que os distúrbios, tanto na criança, quanto no adulto, parecem estar ligados a traumas psíquicos em decorrência das relações objetais patogênicas, bem como em decorrência de um declínio social da imago paterna, ou seja, neuroses e psicopatologias intimamente dependentes das condições da família, como diz Lacan em Complexos Familiares, 1985, fiz este trabalho pensando a psicanálise, como uma prática de linguagem que possibilita, ressignificar marcas, por vezes, irreversíveis.

Para Lacan, o sujeito vai representar a palavra que o marca através de um gozo, não no sentido prazeroso, mas no sentido de um sofrimento, marcando o sujeito de maneira singular no seu cotidiano de vida.

Da prática analítica, é nosso dever suportar que efeitos, o simbólico, real e imaginário causam no sujeito que nos procura como analisante, e, a partir desse ponto trabalhar com esse sujeito tentando ajudá-lo a fazer alguma coisa, a descobrir como fazer alguma coisa para diminuir os efeitos que essas marcas causam sobre ele.

Neste ponto podemos nos interrogar. Mas que efeitos? O que faz com que cada um de nós sofra mais do que precisa?

Em 1970, Lacan recorre à topologia do nó borromeano, onde o real, o simbólico e o imaginário estão atrelados um ao outro, de forma tal que o nó feito por eles não se pode desatar. Lacan colocou no Imaginário a ideia do corpo. Não o corpo da anatomia, mas do corpo como uma substância que sustenta e dá forma a esse sujeito qualificando-o de maneira singular, fazendo com que o mesmo goze de acordo com suas particularidades. O gozo na psicanálise não se relaciona ao princípio de prazer, mas sim ao momento de sofrimento que esse sujeito terá que suportar.  No real, Lacan coloca a vida e a morte. Não a vida e a morte dessa dimensão humana como a tomamos, refere-se a uma morte daquilo que o sujeito diz estar vivenciando, como quando alguém chega ao nosso consultório e nos diz: - Estou morrendo de medo! É verdade, ele está morrendo mesmo de medo, é preciso crer que ele está morrendo. É aquilo que Freud de uma maneira ou de outra identificou como pulsão de morte, alguma coisa que se repete causando mal estar, sofrimento, dor. Neste ponto a psicanálise vai analisar e criar uma possibilidade para nesse sujeito diminuir esses efeitos que aparecem no Real, Simbólico e Imaginário. No Simbólico Lacan coloca o gozo, mais uma vez insistindo de que não é gozo no sentido do prazer, mas daquilo que se repete como sofrimento e que nós não abrimos mão com muita vontade, ou melhor, com muita facilidade.

A psicanálise, como alguns dizem, é uma prática cruel, pois leva o sujeito a descobrir o que ele tem de pior, que não quer se separar e que se repete. A psicanálise em sua prática vai permitir em sua disposição que o sujeito, a cada vez que fala, modifique o que ele tem de pior e que não quer soltar. Na análise, as  palavras não são as mesmas que falamos no dia a dia comum; na análise elas são enriquecidas pela fonologia e sonoridade muito mais do que pelo significado.  A prática analítica trabalha no dia a dia com os analisantes  de forma com que eles descubram que quando eles estão contando alguma coisa de alguém e/ou  quando eles estão falando de alguém com muita raiva, como por exemplo, querendo matar alguém de ódio, esse personagem que faz parte do seu discurso é ele próprio. Esse é o lado cruel da psicanálise e que o analisante vai descobrindo aos poucos. Talvez ele leve muito tempo para descobrir que ele repete.

Na psicanálise quando vamos para o discurso e para a estética, conforme diz professor Aurélio Souza, 2013, e corremos a cadeia borromeana, descobrimos que cada um de nós é responsável por uma coisa importante que Lacan chamou de o tempo na análise. Lacan diz que o tempo na análise não é um tempo cronológico, diacrônico; é um tempo lógico que funciona em um instante de ver, como se  nós olhássemos as coisas; um tempo de compreender, como se elaborássemos o que estamos olhando e; um tempo momento de concluir, que está na nossa estrutura mental, interfere nos raciocínios que fazemos e determina aquilo que podemos ver, o que significa que nós só vemos o que já conhecemos ou sabemos. O mistério disso é a diferença entre ver e olhar. Vemos com os olhos, mas não olhamos com os olhos. Olhamos com uma outra atividade, como exemplo temos os cegos que não veem, mas olham muito. Com isto descobrimos que a psicanálise é uma prática onde o sujeito de alguma forma é responsável pelo seu destino, onde cada um escreve seu destino dentro dessa lógica, lembrando que não é algo da ordem do conhecimento.

Quando a psicanálise se distancia da  filosofia, da medicina, da linguística, da lógica e Lacan faz esse percurso, ele diz que o discurso analítico é outra coisa. Diz que o que Freud chamou de inconsciente, não é tampouco como o próprio Freud diz ser. Lacan diz que o inconsciente cada um de nós inventa, ainda que ele nos determine. A incumbência na análise, na relação entre o analisante e o analista é ajudar o analisante a saber o que fazer com isso que ele mesmo inventa e que o determina e assim se posicionar de uma forma mais saudável e conveniente para ele.

Para ilustrar a realidade que Freud descobriu quando falou de pulsão de morte aqui vai um exemplo que o professor Aurélio Souza nos traz em sua aula, dizendo do homem que vai ao dentista porque está com muita dor de dente e que ao ser tratado e curado de sua dor, antes de pagar o dentista, passa a língua no dente para que sua dor volte. Essa é a realidade que Freud descobriu quando falou da repetição. É isso que cada um de nós na prática da análise descobre quando acompanhamos analisantes, porque o que se repete é a língua passando no dente dolorido para que a dor volte. Outro exemplo dessa repetição é quando alguém está com uma parte do corpo machucado e essa parte do corpo machucado se bate em outros lugares; não é por acaso, nada nesse sujeito de linguagem que nós carregamos sustentados nesse corpo responde a uma casualidade. Isso é determinado por um saber que existe no real. Isso é o inferno de cada um de nós. Como a psicanálise não é uma religião, cada sujeito terá que aprender como sair desse inferno e às vezes, quem sabe, com a ajuda do analista.

É preciso contar e recontar as inúmeras partes das diversas histórias que nos constituíram, para que possamos dar aos buracos da dor, um contorno mais elaborado. Em um processo de análise, tal como nos é exigido pela vida, todo o esforço é destinado a contar, recontar e contar de novo, para que possamos continuar, e quiçá permitir que os buracos da vida nos levem a fazer arte.

 

 

BIBLIOGRAFIA

AISENSTEIN, Marilia. Sobre a ação terapêutica da psicanálise no século XXI. Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 43, n. 3, 171-181, 2009.

BASTOS, Edu Álvaro Manso. Aula: Fragmentos da análise de um Caso de histeria. Data: 04.04.2013 e 11.04.2013.CHAMBERLAIN, David B.  http://birthpsychology.com/person/david-b-chamberlain, maio, 2013

DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

FENICHEL, Otto. Teoria Psicanalítica das Neuroses. São Paulo: Atheneu, SP, 2000

FREUD, S. Obras Completas, Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996

HANNS, Luiz. Dicionário Comentado do Alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996

HUSEN, Josefine E Van. http://birthpsychology.com/person/josefine-e-van-husen, maio, 2013

JULIEN, Philippe. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.

KLEIN, Melanie. O sentimento de solidão: nosso mundo adulto e outros ensaios. Rio de Janeiro: Imago, 1975

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998

LACAN, Jacques. Os Complexos Familiares na formação do indivíduo: ensaio de análise de  uma função em psicologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985

LAPLANCHE E PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2000

MEZAN, Renato. Freud: A Trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2008

MOREIRA, Maria José Franklin. O grito dos drogados. São Paulo: Lemos, 1994

NASIO, Juan-David. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

ODENT, Michel. A cientificação do amor. São Paulo: Terceira Margem, 2000.

QUINODOZ, Jean-Michel. Ler Freud: Guia de leitura da obra de S.Freud. Porto Alegre: Artmed, 2007.

ROUDINESCO, ELISABETH - Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997

SOUZA, Aurélio e Colaboradores. Debate: A topologia no dia-a-dia da clínica psicanalítica, São Paulo: CEP, 2013

SPITZ, René Arpad. O primeiro ano de  vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004

SZEJER, Myriam. A escuta psicanalítica de bebês em maternidade. Conferências de Myriam Szejer no IV encontro brasileiro para o estudo do psiquismo pré e perinatal. ABREP- Associação Brasileira para o Estudo do Psiquismo Pré e Perinatal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

SZEJER, Myriam. Palavras para nascer: a escuta psicanalítica na maternidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

VEIGA, Francisco Daudt da. A criação segundo Freud: o que queremos para os nossos filhos? Rio de Janeiro: 7Letras, 2005

WILHEIM, Joanna. O que é psicologia pré-natal. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997

ZIMERMAN, DAVID E. Fundamentos Psicanalíticos. Rio Grande do Sul: Artmed, 1999

bottom of page